segunda-feira, 27 de outubro de 2008

Dogville

Dogville, Lars von Trier, 2003.

É preciso pôr a imaginação a carburar para ver «Dogville», o novo filme de Lars von Trier. Apesar de se passar na vilória do mesmo nome das Montanhas Rochosas, na América dos anos 30, «Dogville» não tem vilória, não tem Montanhas Rochosas e não tem América, sendo que os anos 30 só se adivinham pelo guarda-roupa das personagens. E o cão que lhe dá nome é invisível.
Dogville é um estúdio na Suécia, com uns cenários, adereços e actores. Tirando estes, que estão mesmo lá, tudo o resto tem que ser imaginado pelos espectadores, até as portas das casas e celeiros, que são abertas e fechadas pelas personagens mas não existem, que rangem mas não estão lá e por isso não podem levar óleo.
«Dogville», primeiro filme de uma trilogia sobre os Estados Unidos, é o «filme de fusão» que o realizador andava a anunciar - fusão entre cinema, teatro e literatura. E se fosse uma coligação eleitoral entre três partidos, «Dogville» ganhava as eleições com maioria absoluta.
Em «Dogville», a realização cinematográfica molda a encenação teatral à medida das suas necessidades visuais, espaciais e dramáticas, dividindo-se em «capítulos», progredindo como um romance e dando formato introspectivo aos diálogos. «Dogville» é uma experiência irrepetível, um concept movie e um desafio à suspensão da descrença e à capacidade de participação do espectador.
Ao contrário dos seus filmes mais recentes, histórias de sacrifício e redenção, «Dogville» começa por ser uma narrativa de compaixão exemplar e conclui-se como uma história de vingança apocalíptica. A vila de Dogville não é um microcosmos da América, como alguns entenderam. É um modelo à escala reduzida da humanidade, que serve para Lars von Trier expôr a sua visão negramente pessimista do comportamento humano e fazer da personagem de Nicole Kidman, por esta ordem, um cordeiro indefeso, um animal de carga e um anjo exterminador. (Kidman quebrou, entretanto, o seu compromisso de interpretar a trilogia, assumido em Cannes).
No final de «Dogville», só sobra piedade para os irracionais. Entenda-se como a compensação que um escravo pode dar a outro.

Eurico de Barros
in «Diário de Notícias» (10-10-2003)

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