quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Céline regressa em português

Há dois momentos essenciais na obra de Céline. O primeiro é talvez o mais conhecido. Quando se fala deste autor – por sinal, um dos mais extraordinários escritores da literatura francesa do século XX, ao mesmo tempo central (pelas suas inovações estilísticas, e também pelo caminho que abriu a muitos que se lhe seguiram) e marginal (pelo carácter atrabiliário de muito do que escreveu, de muito daquilo em que acreditou) – toda a gente se lembra logo do célebre Viagem ao Fim da Noite. E no entanto este seu primeiro romance estava ainda longe da «música» celiniana, daquilo que viria de facto a caracterizar o seu estilo inconfundível.

Talvez em nenhuma outra fase, em nenhuma outra das suas obras, se tenha dado uma tão feliz confluência entre conteúdo e estilo do que nesta trilogia final (Castelos Perigosos, Norte e Rigodon) que a Editora Ulisseia vai pela primeira vez publicar na íntegra em Portugal. Ainda há poucas semanas, aliás, num artigo publicado no Nouvel Obervateur, a propósito da saída, em França, da obra de Henri Godard, Un Autre Céline, considerava Philippe Sollers que esta trilogia fazia parte dos seus «mais belos livros». E acrescentava, num toque assassino «há ainda alguns atrasados que pretendem limitá-lo à Viagem».

Confluência de estilo e conteúdo? Pela primeira vez, com efeito, Céline está aqui no centro dos acontecimentos. E os acontecimentos estão à altura do seu delírio: esta é a história do crepúsculo dos deuses. Ou pelo menos do crepúsculo da Alemanha ensanguentada (que nos perdoe o Aquilino), de um país inteiro em chamas, e também do crepúsculo das esperanças de todos aqueles que tinham apostado tudo na vitória do Eixo. Os três romances que vão agora publicar-se formam um todo indestrinçável. Como escreve Frédéric Vitoux: «Se Norte evoca o começo da errância celiniana, de Paris às planícies de Brandeburgo, passando por Baden-Baden e Berlim, Castelos Perigosos inscreve-se no meio de Rigodon. Este último (o romance póstumo de Céline) conta no essencial as duas viagens de comboio, feitas primeiro de norte para sul, até Sigmaringen, e depois de sul para norte, de Sigmaringen até à Dinamarca, enquanto Castelos Perigosos se atém à história dos meses passados na pequena cidade do Bade-Wurtemberg, transformada de súbito em refúgio de todos os colaboracionistas em fuga e no derradeiro território francês do governo de Vichy.»
De modo que, a partir de Castelos Perigosos, o estilo apocalíptico de Céline encontra como também diz Frédéric Vitoux, a grande história. E o mesmo crítico conclui: «A escrita celiniana atinge, neste equilíbrio entre o delírio fantasmático e o real, a sua máxima perfeição…».

Perfeição, pois. Mas era preciso que a versão portuguesa da obra não traísse esse seu estatuto. Deve-se a Clara Alvarez, a tradutora das três obras, o ter garantido isso. Não era uma aposta nada fácil de ganhar. Estes livros são de uma complexidade muito grande, a riqueza vocabular de Céline é deveras esfuziante, de modo que conseguir transmitir, em português, toda a genialidade do autor exigia uma quase idêntica genialidade no trabalho de tradução. Isso foi, a nosso ver, conseguido, e a publicação destas obras é, igualmente, uma forma de homenagear a própria tradutora.

João Carlos Alvim
http://annualia-verbo.blogs.sapo.pt/86302.html

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