terça-feira, 3 de março de 2009

Religiosidade

"É muito frequente ouvir aos portugueses que o seu povo é um povo irreligioso; que aqui em Portugal os problemas de religião não interessam na verdade a ninguém. Parece-me que nisto, como em outras coisas, sofrem de um engano.
Em poucas partes há uma fronteira tão profunda como a que há aqui entre a população rural, entre o genuíno povo português campestre e as classes cultas, ou pseudocultas, que habitam nas cidades. A cultura destas classes é estrangeira, ou melhor, é francesa. (...)
Os portugueses, procedentes dessas classes cosmopolitizadas das cidades, de Lisboa ou do Porto, os que se formaram nos livros de moda da ciência fácil de exportação, os que no fundo se envergonham da sua pátria, esses são os que dizem e repetem que aqui não há uma questão religiosa nem interessam a ninguém os problemas religiosos. E eles, entretanto, crêem nos milagres da ciência. (...)
A religiosidade portuguesa, como a galega, o que alguém chamaria, não sei com que fundamento, religiosidade céltica, há que ir buscá-la sob as formas regulares e canónicas da religião oficial. Por baixo dela palpita e vive ainda um certo naturalismo que tem muito de pagão e não pouco de panteísta.
Há aqui sempre latente uma certa religiosidade pagã, diferente da religiosidade castelhana, que nos lembra antes a dos povos semitas.
O Cristo espanhol, dizia-me uma vez Guerra Junqueiro, está sempre no seu papel trágico: nunca desce da crua, onde, cadavérico, estende os braços e alonga as pernas cobertas de sangue; o Cristo português anda pelas praias, pelos prados e montanhas, a brincar com a gente do povo, ri-se com eles, merenda, e, de vez em quando, para desempenhar o seu papel, pendura-se uns momentos na cruz.
Não é, contudo, a religiosidade portuguesa tão ridente e alegre como esta não muito reverente parábola do imaginativo poeta poderia fazer crer. Aqui, há o culto à morte; somente, em vez de ser trágico, como em Espanha, é elegíaco e tristonho."

Miguel de Unamuno
in "Por Terras de Portugal e da Espanha", Assírio e Alvim, 1989.

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