domingo, 15 de junho de 2008

Sobre o referendo irlandês ao Tratado de Lisboa

Ao recusar o Tratado de Lisboa a Irlanda prestou, pelo menos momentaneamente, um bom serviço à Europa. A responsabilidade que tinha em mãos era histórica. Depois de ter sido rejeitada por 2 vezes, na França e na Holanda, as oligarquias políticas europeias, armadas da habitual canalhice, decidiram sujeitar a Constituição Europeia a pequenas alterações de modo a poderem implementá-la sob um outro nome, uma outra aparência que escondia a mesma substância.

Lisboa foi então designada palco da encenação dessa farsa. Orgulhosa de fazer, como habitualmente, o papel de burra (aparentemente as boas lições nunca as aprende, como revelam todos os indicadores socio-económicos) mas obediente, a classe política portuguesa, e os seus jornalistas, rebolaram de regozijo com as festas e encómios dessa “União Europeia” que lhes define o norte e o sentido. “Muito Bem”! – Disseram-lhes, e eles, patéticos, apressaram-se a elogiar o desempenho do homem que, armado do digníssimo título de primeiro-ministro, a representou (à classe política portuguesa, entenda-se).

Orgulhoso do serviço, o funcionário português desses novos poderes globais, ainda animado pelos elogios e crente num triunfo do “sim” irlandês, não se fez rogado e anunciou mesmo em plena Assembleia da República o quão importante era para a sua carreira a aprovação daquele Tratado. Ah, estes políticos modernos, sempre preocupados com as causas mais elevadas!

O plano era perfeito. A farsa seria ratificada em sede parlamentar, livre dos humores da população, e pronto… e todos cumpriram a sua parte, todos menos os irlandeses. Não é que a classe política deles tivesse outra verticalidade, o problema é que estava obrigada pela própria lei interna a referendar o Tratado. Coitados, os ingénuos não encontraram forma de contornar esse detalhe, lamentável, sem dúvida, pensarão agora os políticos europeus. Se ao menos o referendo fosse uma questão de promessa política, como noutras latitudes mais ibéricas, teria sido mais fácil… mas o raio da lei…

Era só um referendo! Só um! O Tratado fora ratificado, à revelia dos povos da Europa, em todos os Parlamentos por onde passara. Bastou uma única consulta popular para ser recusado. Tal como o documento anterior, sob a designação de Constituição Europeia, havia passado nos parlamentos e chumbado entre os povos!

Motivações Diferentes

As motivações por detrás do “não” do povo irlandês foram diversas e contraditórias entre si. Uns votaram assim por razões identitárias e nacionalistas, outros em defesa de valores conservadores e cristãos, outros por acharem que o tratado configurava um ataque à sua ideia de Estado-previdência e outros ainda por temerem um potencial aumento da carga fiscal e do peso do Estado na vida irlandesa. Havia, portanto, de tudo, e sensibilidades que nunca poderiam chegar a um entendimento político que não fosse de tipo “negativo”, no sentido de estar “contra algo”, ou seja, poderiam, como o fizeram, somar votos entre si, mas não construir qualquer projecto em conjunto pela ausência de princípios comuns.

Contudo, no lado do "sim" sucedeu o mesmo, e aí ficaram também as gentes mais influenciáveis pelas ideias dominantes e as que têm menos interesse pelo fenómeno político. A argumentação do lado do "sim", na boca do cidadão comum, foi sempre um acervo de clichés e de generalidades entediantes.

A nossa motivação

O nosso “não”, se o tivéssemos podido expressar, assentaria precisamente na nossa “europeidade”. Podendo parecer contraditório, não o é! Fazendo nossa aquela imagem-guia que descobrimos em Jean Mabire, diremos que temos duas nações, a nossa nação original é a Europa e dentro dela, a uma outra escala, numa relação de complementaridade, a nossa nação é aquela que se projectou do encontro dos celtas e dos iberos, com outros povos indo-europeus, no extremo ocidental da Europa, para o futuro, numa corrente histórica que se mantém ligada por essa referência mítica primordial (a nossa especificidade face aos povos irmãos acabou por ser delineada por aqueles aspectos histórico-culturais que nos são próprios, como, a título meramente exemplar, a língua).

Portanto, é por fidelidade à Europa-Mãe que não podemos deixar de denunciar este Tratado como expressão da anti-Europa. Os defeitos que ali encontramos são os mesmos que encontrámos no texto da Constituição Europeia: a imposição dos valores humanitário-universalistas como definição do projecto europeu e a pretensão messiânica e proselitista – que está sempre presente naquilo que, convencido da sua superioridade moral, tem aspiração à universalidade – concretizada no objectivo de “promoção” dos valores da U.E. em todo o mundo.

Naturalmente, por se tratarem de “valores universais” e que dependem da adesão, eles não podem definir nem a Europa nem o homem europeu. Existirão não-europeus que aderem a eles em contrapartida a europeus que os rejeitam. Daqui decorre o mais inaceitável defeito do Tratado, a completa ausência da afirmação do que é particular da Europa e do europeu, do que é diferenciador face ao estrangeiro, que não dependa da adesão a uma ideologia, que seja material.

Um caso exemplar disso é a ausência da definição concreta das fronteiras geográficas da Europa (que existem no mundo físico, material, e por isso não são uma questão de adesão a “valores”). Ao não delimitar essas fronteiras este Tratado abre as portas à potencial inclusão da Turquia, de Israel, ou mesmo do Magrebe africano.

Uma vitória da democracia?

Podemos considerar, como fizeram a maioria dos partidários do “não”, que esta vitória foi da democracia? Bom, a resposta é mais complexa. Se estamos a falar de democracia-liberal representativa, que é precisamente aquela que o Tratado de Lisboa, com o objectivo de fechar qualquer alternativa, procura definir como caracterizadora da U.E. (cf. artigo 8A), então a única coisa que podemos dizer é que o resultado do referendo constitui para esse modelo uma derrota a toda a linha!

Se estamos a pensar nas formas de democracia orgânica, participativa ou directa, então sim, do ponto de vista meramente institucional tratou-se de uma vitória dessas formas de expressão política, do povo, como dos órgãos e associações da sociedade que existem para lá dos partidos.

Porém, se saímos dessa análise mais formal, a verdade é que aquela vitória, como aliás sucede em todos os combates histórico-políticos, não foi um produto da competência do “Demos” mas do “escol” que lutou do lado do “não” e forneceu a esse “Demos”, a essas massas, a sua argumentação e a sua análise. Na verdade, bastou escutar as justificações desse “Demos” para se perceber isso mesmo. Aqueles “nãos” variados repetiam as frases e as análises que lhes haviam sido emprestadas pelas "minorias mais capazes" que se colocaram no seu campo. Goste-se ou não, foi essa “aristocracia”, essas minorias, as únicas a ler, analisar e reflectir sobre o documento, entre o “Demos”, tanto no campo do “sim” como do “não”, o Tratado não foi lido nem foram compreendidas as suas consequências. Aqueles votos foram sustentados tanto sobre a argumentação disponibilizada pelas “melhores minorias” de cada um dos lados, como sobre uma intuição própria, mais abrangente, da construção europeia, pouco dependente do objecto concreto que estava a votação, no caso o Tratado de Lisboa.

Embora saibamos valorizar na ordem política essas apreensões mais intuitivas da realidade, que constituem muitas vezes a melhor defesa contra as deturpações elaboradas mas artificiais do mundo, não podemos deixar de dizer que a leitura efectiva do Tratado era condição sine qua non para se poder falar com propriedade em autoridade do “Demos”.

Assim, como sempre, esse “Demos” não foi mais que o repositório, tornado força-motriz, das ideias que lhe vieram de cima. Uma negação importante do princípio democratista.

Vale a pena realçar que este resultado representa também uma derrota da asfixiante presença da partidocracia em toda a vida das sociedades ocidentais, porque, há que relembrá-lo, a quase totalidade dos partidos políticos irlandeses colocou-se do lado do “sim”.

Os modelos democráticos e o dinheiro

Por outro lado, este referendo constituiu mais uma demonstração da relação de enorme proximidade entre os modelos democráticos e o dinheiro, e não há quem tenha coragem de corrigir essa perversidade. Como a democracia se exprime pelo triunfo de posições difundidas por “elites” sobre as massas, ou seja, pela capacidade dessas posições serem aceites entre a população, ela surge muito dependente do poder financeiro, porque é ele que paga a difusão das mensagens propagandísticas que decidem os votos do “Demos”.

O “não” na Irlanda só pôde competir contra os partidos e os grandes interesses que lhes estão subjacentes porque beneficiou do dinheiro de alguns multimilionários (sendo o caso mais mediático o de Declan Ganley e da organização que liderava, a “Libertas”) apostados em rejeitar o Tratado; dinheiro esse que permitiu o acesso das ideias-chave do “não” aos órgãos de comunicação social, fora dos quais não existe realidade para a maioria das pessoas, bem como o espalhar dessas ideias pelas ruas do país…

E agora?

De qualquer forma, ainda que conscientes de que este “não” tem muitos “nãos” opostos, conscientes de que o voto foi, em muitos casos, ditado por interpretações duvidosas ou simplistas do Tratado, congratulamo-nos com o resultado.

Mas não entramos em euforia, as reacções das principais figuras da U.E. ao resultado mostraram que o tacticismo pouco ético próprio do aparelho político europeu está para continuar. A chantagem política sobre o povo irlandês já começou e, provavelmente, irá em crescendo nos próximos tempos. As afirmações de que, independentemente daquele desfecho, o Tratado deve avançar, são sinal mais que evidente para concluirmos que, uma vez mais, os funcionários políticos que na Europa se encontram ao serviço dessa ordem político-financeira global e destruidora das pátrias, não estão dispostos a parar perante nada.

Aparentemente, nem perante os próprios “valores universais” que afirmam seus. É que, ironicamente, o desrespeito manifesto pela decisão irlandesa é em si a negação das tais ideias com que, na incapacidade de afirmarem a defesa da identidade da Europa e os seus limites materiais, pretenderam caracterizar o seu projecto político. O Tratado de Lisboa introduz no Preâmbulo do Tratado da U.E. o seguinte (confirmar também o artigo 1A):

«Inspirando-se no património cultural, religioso e humanista da Europa, de que
emanaram os valores universais que são os direitos invioláveis e inalienáveis da pessoa humana, bem como a liberdade, a democracia, a igualdade e o Estado de direito»

Que liberdade é a deles? A que nega aos homens e mulheres da Europa a possibilidade de decidirem sobre o seu futuro, como sucedeu na maior parte dos Estados? A que lhes dá essa possibilidade mas sob ameaça de que, caso o exercício dessa sua liberdade não seja de acordo ao pretendido, serão penalizados?

Que igualdade é a deles? A que faz com que uns poucos funcionários medíocres que nada provaram na vida decidam em sedes parlamentares ou em pequenas reuniões sobre a vida de milhões dos seus compatriotas?

Que democracia é a deles? A que rejeita os resultados do jogo democrático quando esses não são os “seus”?

E sobretudo, que Estado de Direito é o deles que faz avançar um tratado quando o Direito diz que a sua rejeição por um dos Estados-membros impede a sua implementação?

Rodrigo N.P.
bf_europa@yahoo.com

Sem comentários: